No tempo da conquista de Canaã, Israel era uma liga tribal, uma confederação livre de clãs unidos em torno da adoração a Iahweh. Porém, por quase dois séculos não havia nenhum governo central. Israel era governado por juízes, que o Espírito de Iahweh levantava em tempos de emergência para reunir as tribos para se defenderem contra o inimigo (Juízes 3.10; 14.6). Os juízes possuiam uma autoridade carismática que representava bem a teocracia de Israel. Iahweh era seu único rei, que reinava sobre o povo através do seu representante designado. Havia um foco na organização de Israel, porém não era governamental, mas religioso, centralizado na arca da aliança (1 Samuel 4.1-4). A fraternidade do povo era afirmada quando se reuniam diante dela, nos dias de festa, para renovar sua aliança com Iahweh. Eles conscientemente rejeitaram a idéia da monarquia, tão proeminente nas culturas ao seu redor (Egito, Assíria, Pérsia e Babilônia), e também recusaram-se a imitar o padrão de cidade-estado da Canaã antiga. Eram uma teocracia tribal, um povo, não tanto geográfica ou politicamente, mas religiosamente; e seu rei era Iahweh. Isto é bem ilustrado pela rejeição por Gideão de ser rei: “Não domina rei sobre vós, nem tão pouco meu filho dominará sobre vós; o Senhor vos dominará” (Juízes 8.23). Mesmo assim, a própria recusa de Gideão demonstra certa ansiedade do povo e desejo de ter, de fato, um rei, e, assim, ilustra a rebelião e julgamento que tanto caracterizou o período desde o êxodo (
O conceito do reino A invasão dos filisteus. Em última análise, foi a ameaça dos filisteus que forçou Israel a introduzir a monarquia e disto, estabelecer um estado pleno e territorial. Os filisteus eram bem mais organizados e militarmente efetivos que os cananeus. Já haviam forçado a tribo de Dã a ir para o Norte. Mas o golpe decisivo aconteceu quando os filisteus cortaram Israel pela metade, capturaram a arca, mataram os sacerdotes da arca e estirparam Silo junto com seu santuário (1 Samuel 4). Era uma derrota total, a mais profunda humilhação militar e espiritual. O povo de Deus foi esmagado (1 Samuel 13.19-23) e ficou em desespero, procurou união sob um rei que deveria ser apontado “por uma duração”. O carisma falhou e o povo, angustiado, se voltou para a monarquia. O desenvolvimento do conceito:
1. seu surgimento. Embora a idéia de realeza tenha começado cedo no pensamento dos israelitas (Gênesis 36.31; Êxodo 19.6), a instituição do reino demorou quase duzentos anos, durante o período dos juízes, antes de se concretizar. De fato, a atitude do Velho Testamento a respeito de um rei é profundamente ambígua. A instituição do reino na vida nacional de Israel chegou a ser vista hesitante e criticamente. Em si, a instituição não era essencial à salvação de Israel (1 Samuel 8-12, especialmente 12.15,25). Era até vista como um ato de apostasia do reino verdadeiro de Iahweh, para uma imitação falsa e ilegítima dos reis pagãos. Por outro lado, no Velho Testamento, esta perspectiva bastante negativa da ideologia da monarquia é contrabalanceada por uma perspectiva positiva do reino como designação divina para o bem do povo. Era seu dever governar Israel com justiça, proteger os fracos e dirigir o povo para a verdadeira adoração a Deus. Quando Israel pediu a Iahweh por um rei, ele não aprovou por causa da rejeição da teocracia, implícita no pedido , do domínio unicamente de Iahweh sobre eles (1 Samuel 8.6-9). Apesar disto, eles escolheram Saul, que então os levou à ruína.
2. Saul. Saul exemplificava bem porque o Velho Testamento via a monarquia negativamente (embora ele tenha sido designado pela graça de Deus, 1 Samuel 9.15-17!) pois, embora Saul tenha ganho vitórias iniciais contra os filisteus, foi sob seu mal-reinado que os filisteus eventualmente dominaram a terra (1 Samuel 31). Em vista disto, Iahweh instituiu o reino permanente da linha davídica (1 Samuel 13.14).
3. Davi. Todos os aspectos bons e benéficos da monarquia, que pertencem a uma perspectiva favorável da instituição, são focalizados em Davi e seus descendentes. Foi Davi que salvou seu povo, pelo seu carisma, sua liderança militar e agudeza política. Destruiu os filisteus, fez de Jerusalém sua capital e sua propriedade particular, reduziu as fortalezas cananéias, fez do transjordão seu tributário e estendeu o poder de Israel até a Síria. Aliás, Davi realmente completou a conquista de Canaã e, sob sua liderança, cada centímetro de solo palestino então era Israel, ou estava sob domínio israelita. O que foi confederação indefinida de tribos pisadas sob o calcanhar de um opressor estrangeiro numa geração, então, se tornou um império de tamanho considerável. Um novo Israel surgira, e a idade dourada começara. Aqui encontramos um rico vocabulário que descrevia o rei como: “filho de Deus” (Salmo 2.7), sacerdote de uma ordem única (Salmo 110.4) e até o próprio folêgo que dava vida ao seu povo (Lamentações 4.20). O rei, se permanecesse obediente à vontade divina, poderia ser uma fonte de vida, salvação e benção para o povo de Iahweh (1 Samuel 12.14; Salmo 132.12).
É nesta conexão de um vocabulário singular para descrever o rei Davi, que o Velho Testamento relaciona o reino à eleição. E é na eleição de Israel, muito precedente à monarquia, que o conceito do reino começa a germinar. A eleição conscientizava Israel de que era um povo chamado para viver sob o reinado de Deus, e é neste lugar que a noção do reino de Deus encontra suas raízes. Não é surpreendente, então, que a perspectiva positiva da monarquia, encontrada em Davi, seja ligada à eleição. Deus elegeu Davi como rei (Salmo 89.3-4, 33-34; 78.67-72; 132.10-18; 18.50). A aliança de Deus com Davi, inclusive, segue os padrões da aliança patriarcal. O rei não governava autônomamente ou por vontade própria, mas era o deputado de Deus, responsável ao Suserano divino pela sua conduta (assim a aliança com Davi é semelhante à aliança mosaica). Mas a ênfase está não nas obrigações, e, sim, nas promessas incondicionais de Deus. A nação é segura porque assim Deus prometeu (2 Samuel 7.15; Salmo 89.33-37; 21.7; 20.6-7).
Tudo isto indica que a aliança com Davi chegou a ser vista como uma renovação e extensão das promessas para Abraão. Como em Abraão, em Davi todas as nações serão abençoadas (Salmo 72.17)!
Ressaltamos a este respeito que, não era a monarquia como instituição em si que foi eleita, mas a família davídica. Deste modo, quando o desastre de
4. Salomão. Na pessoa de Salomão, a base da liderança sobre Israel finalmente passou do carisma para a dinastia. Com ele, Israel acumulou mais riquezas, poder e prestígio. Seu reinado trouxe prosperidade material e segurança física, tais como Israel jamais sonhara e que nunca mais iria conhecer. Colhendo os frutos das realizações do seu pai, Salomão se destacou nas áreas de relações internacionais, indústria metalúrgica, comércio e negócios mundiais, construções megalíticas, literatura, e alianças judiciosas. A Bíblia não se cansa de contar da riqueza e esplendor da corte de Salomão (1 Reis 10.11-29). Mas, também com Salomão, o estado de Israel chegou a ser igualado com o reino de Deus. A sacralização inevitável aconteceu. Os propósitos de Deus na história vieram a ser entendidos como equivalentes à ordem existente, o status quo. Tudo isto se fez em face da tensão social aguda, surgindo do nepotismo e favoritismo na corte real, impostos opressivos, serviço militar obrigatório e compromisso religioso. Eventualmente, a maioria dos israelitas rejeitaram o estado salomônico como cumprimento do destino de Israel e uma revolução estourou sob a liderança de Jeroboão, um chefe das turmas de trabalho forçado. O preço desta revolução foi um total desastre político, do qual Israel nunca se recuperou. Em poucas gerações, Israel passou de teocracia para a monarquia forte e solidária, e então para a monarquia fraca e dividida. A análise do conceito. A monarquia, especialmente a de Davi, deixou sua marca inesquecível
O reino de Davi apontava para o futuro através da idéia do messias. O termo já fora aplicado a Davi como o “ungido” de Deus, por ele ser seu “filho” (Salmo 2.7; 89.27; 2 Samuel 7.14). E como anteriormente mencionado, veio a se referir ao descendente de Davi que viria inaugurar o prometido reino de Deus (Amós 9.11-12; Oséias 2.5; Isaías 9.2-7; 11.1-9; 32.1; 33.17; Jeremias 33.19-26; Ezequiel 37.24-28). Tal reino, também como anteriormente mencionado, teria uma orientação religiosa. Enquanto entendido em termos altamente racionais e políticos durante os reinados de Davi e Salomão, com a subseqüente desilusão no estado, e depois a divisão e ainda o cativeiro, o reino adquiriu uma interpretação cada vez mais espiritual. A ligação religiosa do reino e, especificamente, a ideologia acerca de Jerusalém e do templo, grandemente adiantou esta interpretação espiritual. Já vimos como Davi tomou o primeiro passo no surgimento desta ideologia quando trouxe a arca para a sua cidade, Jerusalém. Salomão promoveu ainda mais a ligação religiosa do reino quando construiu o grandioso templo bem na capital do reino, ainda Jerusalém. Com isso, o Velho Testamento desenvolve uma perspectiva teológica distinta sobre a significância do monte de Sião (Salmo 84.5-7; 87.1-3; 132.13-14). Jerusalém, o centro político de Israel, adquiriu uma natureza profundamente religiosa, até santa, pela presença do templo nela (Jeremias 3.17; Isaías 62.1-12). Jerusalém chegou a ser em si a fonte de vida, luz e prosperidade para o povo de Deus (Salmo 92.12-15; Ezequiel 47.1-12). Dela, a justiça, a luz e a verdade seriam distribuídas para as nações (Isaías 2.3-4; 60.1-4) e nela todas as nações se reuniriam para adorar a Deus (Isaías 66.10-24). No fim, toda a humanidade se beneficiaria através da paz e prosperidade de Jerusalém e o bem-estar do povo de Deus (Zacarias 14.16-21). Tal era a extensão da espiritualização de Jerusalém que, mais tarde, seria usada como imagem do céu e para expressar o estado final do cumprimento abençoado que o destino de Israel aguardava (Apocalipse 21.2). Em resumo, o conceito do reino, através da sua ligação à dinastia davídica, à Jerusalém e ao templo, adquiriu características religiosas e escatológicas. Ele se referia à fé de Israel e à sua esperança orientada para o futuro pela vinda do messias que inauguraria o reino de Deus. Tanto seu aspecto religioso quanto a sua orientação futura teriam grandes significâncias por todo o resto da Bíblia, culminando na vinda de Jesus e o registro do Novo Testamento.
IMPLICAÇÕES ATUAIS
O conceito do reino, fruto do surgimento da monarquia, contribue para a compreensão da tarefa missionária do povo de Deus. Consideremos as suas implicações. O conceito do reino: 1. O conteúdo da mensagem missionária. O conceito do reino terá cada vez mais significância ao longo da revelação bíblica. Decerto, constituiu o âmago da pregação de Jesus desde o início (Marcos 1.15) até ao fim (Atos 1.3). A última cena da história da igreja em Atos fecha descrevendo a pregação missionária de Paulo nestes termos (28.31). A mensagem que ocupa a igreja até a volta de Jesus é o evangelho especificamente “do reino” (Mateus 24.14). Anunciamos a chegada do rei davídico prometido e do reino de Deus que este inaugurou. 2. O anúncio da esfera do reino. O reino de Deus que anunciamos é um domínio sobre toda a sua criação, até aos confins da terra. Com Davi, o reino de Israel alcançou sua máxima extensão em toda a sua história. Mas, através do seu descendente, esta esfera não terá limites. Cabe ao povo de Deus levar avante, para cada canto do globo, o anúncio do domínio universal de Deus através de Jesus Cristo. 3. O anúncio da existência do reino. No Velho Testamento, o termo “reino” (malkûth) se refere principalmente ao fato do reino (reinado), e somente secundariamente à esfera daquele reino. Neste sentido, a palavra grega basileia, no Novo Testamento, traduz corretamente o original. A referência principal é ao fato do reinado soberano de Deus. Agora, este fato em si não é novidade. Aliás, temos destacado nos capítulos anteriores que o reino de Iahweh sobre Israel e toda a terra é fundamental à sua fé desde os relatos da criação. O reinado, especialmente de Davi, concretiza mais a idéia do reino de Deus apontando para paz, justiça e prosperidade. Decerto, estas idéias ainda passam por um processo de espiritualização. Mas sem o acontecimento do reinado de Davi, o judeu mal poderia imaginar como seria o messias da linhagem davídica. Então, o fato do reino de Iahweh não é a notícia para se anunciar. O anúncio é que, em Jesus, este reino se tornou realidade presente, fato com que cada um tem que tratar. Não é mais remoto ou apenas esperado, pertencente ao fim dos tempos ou a uma esfera transmundana da realidade. Cada um deve levar em conta a presença do rei Jesus e a realidade do seu reino. 4. O anúncio do evento do reino. Como os reinos de Saul, Davi, Salomão, etc. eram acontecimentos históricos que tocaram concretamente a vida do povo de Deus, também é o reino que Jesus inaugurou. Era um evento histórico, não dogmático ou filosófico. O anúncio do reino é a proclamação de um evento histórico, de um acontecimento acerca da vida, morte e ressurreição de Jesus. Exige não só afirmação intelectual, como uma doutrina, mas aceitação, transformação e sujeição, como um relacionamento. 5. Um anúncio não tanto político quanto religioso. Pela sua associação com a arca e depois com o templo, reparamos que o conceito do reino era intimamente ligado ao culto e à fé israelita. Isto não quer dizer que o conceito era apolítico, e muito menos a-histórico. Inclusive, no início da monarquia israelita, o conceito era mais político que religioso. De fato, era impossível separar totalmente estas duas esferas de ação. Entretanto, a direção do desenvolvimento do conceito do reino foi logo marcada pela sua associação com o culto. A tendência espiritualizante cresce através de toda a revelação da Bíblia até achar seu primeiro cumprimento no ministério de Jesus, e ainda aguarda mais cumprimento na volta do mesmo. Precisamos andar com certo cuidado aqui, pois vale a pena frisar que, por um lado, o reino de Deus não é principalmente político. Por outro lado, inclui também a política, pois não devemos negar-lhe sua tarefa histórica. O reino de Deus é sua administração soberana sobre toda a criação que, por sua vez, demanda a resposta de adoração e compromisso, uma obrigação que tem ramificações na vida pessoal e social, que atinge fundamentalmente a pessoas e, através delas, todos os seus relacionamentos familiares, comunitários, econômicos, políticos, etc. O convite para entrar no reino implica numa aliança com Deus. A pregação do reino é, antes de tudo, uma chamada à adoração e ao compromisso com Jesus que, por conseqüência e como parte deste chamado, convoca uma transformação em todas as relações humanas. 6. Seu centro é a nova Jerusalém e Jesus. Como nos reinos de Davi em diante, o reino de Deus tem como o seu centro a nova Jerusalém e Jesus, o rei (Hebreus 12.22-24). A glória de Deus ainda habita nela e o seu centro é Jesus (Apocalipse 21.9-11, 23), cuja luz ilumina o caminho para a vinda das nações. Já não é mais uma cidade geográfica, mas uma pessoa e seu reino que será o centro da reunião do povo de Deus e, eventualmente, dos povos. “Naquele dia recorrerão as nações à raiz de Jessé que está posta por estandarte dos povos; e a glória lhe será a morada” (Isaías 11.10). O reino que anunciamos tem seu centro na pessoa de Jesus. É ele que proclamamos para todos os povos.
PERGUNTAS PARA DISCUSSÃO:
1. O Velho Testamento avalia positiva ou negativamente o surgimento da monarquia?
2. Que significava para Israel o conceito “reino de Deus”? Que significa para a igreja hoje?
3. Pode a igreja hoje cair no mesmo perigo de Israel no período da monarquia, isto é, de se igualar ao reino de Deus?
4. Qual é a ligação entre o conceito de eleição e a monarquia?
5. Considerando: a) que o reino de Deus tem implicações políticas religiosas e b) que deve haver equilíbrio entre estes dois pólos, o que a igreja precisa, no Brasil, para ser equilibrada no anúncio do reino?
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